Encontrei-me com Hideidi Torres, através do instagram, numa tarde de sexta-feira, 31 de janeiro de 2025 e, de lá para cá, suas mensagens me são cada dia mais abrangentes. Capturo ávida suas falas, suas orientações. Transcrevo em meu caderno de anotações e, neste agora, este veículo me será mais visível, ao mesmo tempo em que torno accessível à muitos.
Sua experiência, enquanto estudante de jornalismo, salta-me o entendimento, pois que tenho um texto - O ato de ler - que abordo algumas dessas passagens.
Ali ela fala do "lead", qual seja o resumo inicial de uma matéria jornalística, o qual consistia em responder as perguntas específicas: quem, o quê, quando, onde, e por quê? Assim, o leitor saberia exatamente o teor da notícia.
Sua fala também se refere a Nelson Rodrigues e o texto "Coroa de Orquídeas". Transcrevo:
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A Coroa de Orquídeas –
Conto de Nelson Rodrigues
Quando a mulher entrou em agonia, ele caiu em crise. Atirou-se em cima
da cama, aos soluços. Foi agarrado, arrastado. Debatia-se nos braços dos
parentes e vizinhos; esperneava. E houve um momento em que, no seu desvario de
quase viúvo, cravou os dentes numa das mãos próximas. A vítima uivou:
— Ui!
Então, na sala, cercado e contido, chorou alto, chorou forte. Seu
gemido grosso atravessava o espaço e era ouvido no fim da rua. Enquanto isso, o
amigo mordido, na cozinha, exibia a mão: “Tirou um naco de carne!”. Alguém
perguntou baixo, com admiração: “Mas os dentes dele não são postiços?”. Eram.
E, em torno, houve um espanto profundo. Ninguém compreendia que um indivíduo
que usava na boca uma chapa dupla pudesse morder com tanta ferocidade e resultado.
E, súbito, veio espavorido lá de dentro um irmão da moribunda. Pousou a mão no
ombro do Juventino. Pigarreia e soluça:
— Morreu.
Várias
pessoas espichavam o pescoço para ver as reações. Primeiro, Juventino
levantou-se, esbugalhando os olhos. Depois que assimilou o fato, desprendeu-se
de vários braços, num repelão. Dava socos no próprio peito e estrebuchava:
— Me deem um revólver! Quero
meter uma bala na cabeça!
DOR AUTÊNTICA
Essa dor agressiva e autêntica
arrepiava. E havia, disseminado no ar, o medo de que o infeliz ferrasse os
dentes em alguma mão ainda intacta. Durou o paroxismo de dez a quinze minutos.
Por fim, a própria exaustão física serviu de sedativo. Gemia baixo. Mas,
quando o sogro o convocou para ver a esposa, recuou como diante de uma
blasfêmia. Num tremor de maleita, rilhando os dentes, soluçou:
— Não vou! Não quero!
Era a sua antiga e irredutível
pusilanimidade diante da morte. Desde criança tinha medo de qualquer defunto,
fosse conhecido ou desconhecido, parente próximo ou remoto. A idéia de ver a
mulher morta o arrepiava. Defendia-se: “Não!”. E corrigiu: “Agora, não!”. Com
o coração disparado, não pôde evitar a seguinte e quase irreverente reflexão:
“Por que não pintam os cadáveres?”. Perguntaram:
— O enterro vai sair daqui?
Virou-se:
— Claro!
Um dos vizinhos, o mesmo que fora
mordido na mão, vacila e sugere:
— Não será mais negócio
capelinha?
— Por quê?
E o outro, alvar:
— É mais prático. Mais cômodo.
Então, o viúvo exaltou-se. Enfiou
o dedo na cara do vizinho:
—
Considero um desaforo essa mania de capelinha! É uma falta de respeito! Ora
veja!
SAUDADE
Um vizinho e um cunhado partiram,
de táxi, para tratar do atestado de óbito e do enterro. Então, andando de um
lado para o outro, numa excitação de possesso, Juventino surpreendeu e
confundiu os presentes com uma série de confidências, legítimas umas, extravagantes
outras. Na sua euforia retrospectiva, deblaterava:
— Nunca houve marido tão feliz
como eu! Duvido!
Elogiou a mulher de alto a baixo,
chamou-a de “anjo dos anjos”, “flor das flores”. E, súbito, diante dos vizinhos
atônitos e maravilhados, baixa a voz:
— Era tão séria que namorou um
ano comigo, noivou dois e só topou beijo na boca depois do casamento! Quer
dizer, mulher batata!
Havia um aspecto de sua vida
conjugai que ainda o envaidecia: o recato da mulher. Sempre conservaria,
perante o marido, um mínimo de cerimônia. Cutucou o vizinho e segredou: “Teve
pudor de mim até o último momento!”. Pausa, arqueja e conclui:
— Nunca tomou injeção que não
fosse no braço!
Parecia evidente que esse pudor
frenético o deleitava, ainda agora. Numa brusca cólera, desafiou os
circunstantes:
— Isso é que era mulher no duro,
cem por cento! O resto é conversa fiada!
CÂMARA-ARDENTE
As
providências de ordem prática estavam sendo tomadas. Uma hora depois ou pouco
mais, apareceram os funcionários da empresa funerária. Armara-se a
câmara-ardente na sala de visitas. Em dado momento, o viúvo teve de
levantar-se para atender o telefone. Era o cunhado. Estava na casa de flores e
desejava fazer uma consulta até certo ponto delicada. Perguntou:
— Tua coroa pode ser de orquídeas?
Admirou-se no telefone:
— Pode. Por que não?
Pigarreia o cunhado:
— Mas é puxado!
— Quanto?
O outro disse uma quantia.
Juventino esbravejou:
— Ladrões!
Vacila. Lembra-se de que a doença
da mulher já lhe custara uma fortuna; contraíra dívidas, tinha na farmácia uma
conta estratosférica. Acabou optando por outra solução:
— Vamos fazer o seguinte;
orquídea é uma flor besta, sofisticada. Arranja uma coroa mais em conta.
Do outro lado da linha, veio a
pergunta: “Qual é a dedicatória?”. Hesita novamente. Decide-se:
—
Põe assim: “À Ismênia, saudade eterna do teu Juventino”.
ÀS COROAS
Do telefone, veio para a sala.
Até então, fiel à própria covardia, não fora espiar o rosto da mulher no
caixão. E o pior é que seu medo estava mesclado de curiosidade. Costumava
dizer, numa frase rebuscadíssima, que o verdadeiro rosto da mulher aparece só
no amor ou na morte. Mas o diabo era o seu preconceito contra a morte. Acendendo
um cigarro, pensava: “Os defuntos são muito feios!”. Por outro lado,
ocorria-lhe que, com ou sem pusilanimidade, teria de beijar a esposa antes de
sair o enterro. Na sua meditação de viúvo, cogitou de uma solução que lhe
parecia praticável, qual seja: a de beijar sem ver, isto é, beijar fechando os
olhos.
Mais uns quarenta minutos e
começam a chegar as coroas. Uma das primeiras foi a sua. Correu, sôfrego; leu a
legenda fúnebre, em letras douradas. As orquídeas tinham sido substituídas
pelas dálias. E Juventino, recuando dois passos, considerava o efeito. Não
pôde furtar-se a um sentimento de satisfação. Disse de si para si: “Bacana!”. À
medida que iam chegando mais flores, ele se convencia de que a sua coroa não
fazia feio no meio das outras. Pelo contrário. Se não fosse a melhor, podia
figurar entre as melhores.
SURPRESA
Às onze horas, a casa estava
apinhada. Tinha vindo gente até de Vigário Geral. O inconsolável viúvo era
abraçado por uma série de parentes, inclusive alguns que ele julgava mortos e
enterrados. Às onze e meia, Juventino passa por uma nova crise. E uma coisa o
atribulava de maneira particular e dolorosíssima: a doença da mulher. Aos
soluços, interpelava os presentes:
— Como é possível morrer de
pneumonia? Se fosse câncer, vá lá. Mas pneumonia! — Virou-se para um vizinho;
estrebucha: — Sabe que eu estou desconfiado que penicilina é um
conto-do-vigário?
Neste
momento, todos os olhos se voltaram para a direção da porta. Acabava de entrar
uma coroa. Era, porém, uma coisa realmente insólita e gigantesca. Dir-se-ia uma
coroa de chefe de Estado, de rainha ou, no mínimo, de ministro. Toda feita de
orquídeas, ofuscou automaticamente as demais. Atônito, Juventino balbuciou:
“Parei!”. Trôpego, a boca torcida e já distraído da própria dor, veio rompendo
os grupos, no seu espanto e na sua curiosidade. E, com a mão trêmula,
desenrolou a fita. Soletrou, a meia voz, para si mesmo: “À inesquecível
Ismênia, com todo o amor, de Otávio”.
Antes de mais nada, aquele
“inesquecível” foi nele uma espécie de punhalada material. Ocorria-lhe uma
reminiscência cinematográfica: Rebecca, a mulher inesquecível. Virou-se para
os presentes, que pareciam também impressionadíssimos. Perguntava de um para
outro:
— Otávio? Quem é Otávio? Vocês
conhecem algum Otávio?
Não, ninguém conhecia. Mas ele
corria, um por um, todos os parentes: “Mas como é possível? Que negócio é
esse?”.
DRAMA
A obsessão passou a dominá-lo:
voltou para perto da coroa e leu, releu a legenda. Apertava a cabeça entre as
mãos: “Todo amor por quê?”. Concentrou-se. Procurava descobrir, no fundo da
memória, alguém que tivesse este nome, E uma coisa o enfurecia: aquela coroa
espetacular, tão mais bonita e até mais cara que as outras. Fazia seus
cálculos, em voz alta:
— O cara que mandou isto gastou os
tubos. E por quê, meu Deus, por quê?
Houve
um momento em que o próprio Juventino se julgou também um milionário, mas da
loucura. Meteu-se num canto; já não falava mais com ninguém, feroz e
incomunicável. Quase ao amanhecer, alguém veio oferecer um cafezinho. Saltou:
“Vai-te para o diabo que te carregue!”.
Passam-se os minutos, as horas.
Todos os que chegam pasmam para a fabulosa coroa. Finalmente, na hora de
fechar o caixão, a própria sogra, soluçando, vem chamar o genro: “Você não vai
beijar fulana?”. Ergueu-se. Antes, foi ao escritório apanhar não sei o quê.
Atravessou por entre os parentes e vizinhos. Estava diante do caixão. E,
súbito, mete a mão no bolso e… Só viram quando ergueu um punhal e o afundou na
defunta, aos berros de:
— Cínica! Cínica!
A lâmina penetrou por entre as
duas costelas. E a morta parecia rir.
fonte: https://contobrasileiro.com.br/a-coroa-de-orquideas-conto-de-nelson-rodrigues/
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